terça-feira, 22 de novembro de 2011

O sexo feminino perante a Justiça

                         João Baptista Herkenhoff
Prossigo neste artigo o relato de casos judiciais envolvendo mulheres.
Como registrei anteriormente, creio ter tido um olhar de compreensão para com as mulheres que, oprimidas, tiveram de sentar-se no banco dos réus.
A primeira sentença que desejo registrar aqui foi a que proferi acolhendo o motivo de relevante valor moral no ato de um acusado que feriu o agressor de sua irmã Ana Célia, uma prostituta. Prostituta existe para ser abusada, não tem direito de ser socorrida por um irmão? É óbvio que tem esse direito, é pessoa, não é coisa.
Numa segunda decisão, absolvi Jovelina que matou seu companheiro. A vítima jogou água quente e um vidro de pimenta na desditosa mulher e depois passou a bater na companheira com uma panela. Reconheci a excludente de legítima defesa no ato praticado e proferi absolvição sumária, livrando Jovelina até mesmo da humilhação do julgamento perante o Tribunal do Júri. O Ministério Público recorreu, como era de seu dever na hipótese, mas o Tribunal de Justiça confirmou a sentença absolutória de primeiro grau.
Num terceiro decisório, excluí das malhas do processo penal a pessoa de Marlene, mãe de um menor envolvido num atropelamento.  Argumentei: “Sendo a responsabilidade penal, de natureza pessoal, é intransferível. A condição de inimputável do agente – um menor – não autoriza a chamada, ao processo, da mãe do mesmo. Quanto à responsabilidade civil, é outra matéria, a ser apreciada pelo juízo competente.”
Num quarto caso, fundamentei no zelo com que Isabel cuidava de Moacir, seu irmão, doente mental, a razão para libertar Moacir de um processo. Este segurou o braço de uma criança, mas nada lhe fez. A menina ficou assustada, ou porque estranhou a fisionomia do paciente, ou porque conhecia sua condição de insano. Na minha presença, Isabel disse que seu irmão não oferecia qualquer perigo e que ela, que sempre estava atenta aos passos dele, redobraria sua vigilância depois do fato que havia acontecido.
Numa outra decisão assegurei visita íntima de companheiro a uma presa provisória que estava sob minha jurisdição. Não me cabia disciplinar a matéria, em caráter geral, pois juiz das execuções criminais não era, mas tinha competência legal para decidir sobre o pleito de uma acusada que estava submetida a processo sob meus cuidados. Argumentei, no meu despacho, que a prisão não subtraía da requerente o seu direito ao exercício da sexualidade. Quanto a engravidar, somente à presa competia decidir sobre este tema. Não tinha razão jurídica o óbice que se opunha às visitas íntimas justamente sob a alegação daquilo que indevidamente se chamava de “risco de gravidez”. Gravidez não é risco, é um ato livre. Aproveitei a oportunidade do despacho para fustigar o sistema, observando que a mulher não é “sujeito” na estrutura do sistema carcerário, como não é “sujeito” na arquitetura social. A presa tem o direito de “ser mulher” em toda a sua extensão. Finalmente, abrangendo homens e mulheres, fechei meu despacho afirmando que o direito a visita íntima é importante para a reabilitação do encarcerado, pois conduz ao sentimento de pertença ao gênero humano.
Finalmente devo citar, não uma sentença, mas um procedimento adotado em diversas comarcas do interior do meu Estado. Para que esse procedimento seja entendido é preciso dizer que ocorreu no final da década de 1960 e princípios da década de 1970.
Encontrei, em diversas comarcas do interior do Espírito Santo, listas de jurados com uma presença inexpressiva de mulheres. Assim, em tal situação, os tribunais do júri eram, na verdade, tribunais masculinos. Com habilidade, não impondo simplesmente (com invocação do argumento de autoridade), mas conversando, conseguimos alterar substancialmente a distorção, nas comarcas em que essa distorção estava aparecendo.
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, é Professor (em atividade) da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo, palestrante por todo o Brasil e escritor. Acaba de publicar Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).
P. S. – É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio ou veículo, inclusive através da transmissão, de pessoa para pessoa.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Federalismo e Royalties

                            João Baptista Herkenhoff
Federalismo é o sistema político no qual Municípios, Estados e Distrito Federal, sendo independentes um do outro, formam um todo que valida um governo central e federal.
O estado federal é mais democrático, dificulta a concentração de poder, permite ao povo o exercício cotidiano da cidadania através do contato face a face com os poderes locais.
Devido à fraqueza de nossas instituições nos primeiros anos da República Velha, praticou-se nesse período a política do café-com-leite, ou seja, a supremacia de São Paulo (produtor de café) e Minas Gerais (produtor de leite). Essa aliança desvirtuou o objetivo ético do Federalismo.
O sonho federalista de Rui Barbosa endereçava-se à construção de um país justo, onde os pequenos Estados fossem respeitados. Seria um sistema de governo fundamentado em ideais nobres.
Se o Espírito Santo e o Estado do Rio sofrem o impacto do pré-sal (danos ambientais, principalmente), é justo que sejam recompensados pela exploração do petróleo existente no fundo do mar. Não é legítima a distribuição equitativa dos royalties porque os prejuízos da exploração petrolífera, nas profundezas oceânicas, não estão sendo partilhados.
Acresce que nosso Estado sempre foi relegado a uma situação de inferioridade, com afronta aos ideais libertários de Rui Barbosa. Surge agora a oportunidade de ser pago pela dívida centenária.
Outro ângulo da questão é o respeito ao que foi pactuado. Não precisa ser jurista para entender isto, basta ter honra. O homem comum, que nunca entrou numa escola, sela seus contratos com um fio de barba.
Clóvis Beviláqua entende por contrato “o acordo de vontade de duas ou mais pessoas com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direito”.
A recompensa aos Estados produtores já tinha sido ajustada. Por que agora trocar o dito pelo não-dito?
Senhores Deputados e Senadores: é muito trabalhoso abrir a Constituição Federal?
Artigo 20, parágrafo primeiro, já concentrando as palavras para facilitar o entendimento:
“É assegurada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, no respectivo território, plataforma continental, mar territorial, ou compensação financeira por essa exploração.”
O baiano Rui Barbosa e o cearense Clóvis Bevilacqua devem estar querendo irromper de seus túmulos, ressurgir dos mortos para protestar contra a trama que se arma contra dois Estados e principalmente em desfavor do pequenino Espírito Santo.
João Baptista Herkenhoff é Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor. Acaba de publicar: Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).

domingo, 20 de novembro de 2011

Luta nacional e universal contra a tortura

                    João Baptista Herkenhoff
Não por coincidência, mas por fidelidade doutrinária, a proscrição da tortura e o reconhecimento de todo ser humano como pessoa aparecem lado a lado na Declaração Universal dos Direitos Humanos:  artigos 5 e 6.
O momento é apropriado para tratar deste assunto, tendo em vista a sanção, pela Presidente Dilma Rousseff, da lei que criou a Comissão da Verdade.
As Cartas de Direitos posteriores à Declaração Universal dos Direitos Humanos, como a Carta Africana, a Carta Islâmica e a Carta Americana de Direitos e Deveres do Homem referendaram as ideias acolhidas pelos artigos 5 e 6 da primeira. 
A Declaração Universal dos Direitos dos Povos e a Carta de Direitos proclamada pelos Povos Indígenas do Mundo não se referem, expressamente, a direitos individuais específicos.
Entretanto, implicitamente, esses documentos abrigam, na dimensão cósmica de seus postulados, todos os Direitos Humanos particularizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Todas essas Cartas, na sua essência e no seu espírito, recusaram a prática da tortura, bem como o tratamento degradante ou o castigo cruel que se imponha às pessoas.
Da mesma forma, foi sufragado pelas diversas Cartas o princípio de que todo ser humano tem o direito ao reconhecimento de sua condição de pessoa. 
Não bastam as declarações solenes expressas em Cartas de Direitos.  Trava-se nos dias de hoje uma luta universal contra a prática da tortura que, lamentavelmente, não é uma violação da dignidade humana presente nas brumas do passado.
 A "Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes" foi adotada e aberta a adesões, pela Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1984. Sua entrada em vigor ocorreu em 26 de junho de 1987.
Essa Convenção definiu como tortura todo ato pelo qual funcionário ou pessoa no exercício de função pública infrinja a uma pessoa dores ou sofrimentos graves, com o fim de obter dessa pessoa ou, de terceiro, uma confissão, ou com o fim de castigar, intimidar ou coagir.  Esses sofrimentos tanto podem ser físicos, quanto morais ou mentais.
 Também no seio da sociedade civil é ampla a luta contra a tortura.
Em 1974 foi criada na França a ACAT – Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura, que hoje funciona com vigor em nosso país.
Esta associação reúne católicos, ortodoxos e protestantes. Em nome do Evangelho, seus filiados lutam pelos Direitos Humanos em geral, mas muito especialmente pela abolição da tortura, em todo o orbe terráqueo.
Como a "Anistia Internacional", um dos grandes instrumentos de trabalho da ACAT é a correspondência internacional, utilizada para sensibilizar e pressionar governos refratários ao respeito dos Direitos Humanos.
A correspondência é também adotada como forma de levar solidariedade e calor humano a pessoas que se encontram em estado de solidão ou até de desespero.
Nesta hipótese, em alguns casos, os militantes e as instituições que promovem esse trabalho têm de vencer barreiras terríveis para que as cartas cheguem aos destinatários.
No Brasil, inúmeros grupos de Direitos Humanos têm tido extrema sensibilidade para com o problema da tortura. 
A tortura política acabou no país, com a queda da ditadura instaurada em 1964. Mas a tortura contra o preso comum é prática diuturna nas delegacias, cadeias e prisões em geral. 
Centros de Defesa de Direitos Humanos, Comissões de Justiça e Paz, Conselhos Seccionais e Comissões de Direitos Humanos das OABs, Pastorais Carcerárias têm vigilado e denunciado com veemência a prática da tortura nos presídios.
Dentre os grupos que lutam contra a tortura existe um que faz da abolição da tortura a sua razão de ser.  É o grupo "Tortura Nunca Mais". 
Apesar dos fatos dramáticos que a imprensa registra, relatando frequentemente casos de tortura, o crescimento da consciência da dignidade humana e da cidadania tem marcado o cotidiano da vida brasileira.
É assim que vemos, com esperança, o eco, em nosso país, do grande grito de Justiça, Paz e Humanismo: "Tortura Nunca Mais".
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, é membro emérito da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória. Acaba de publicar Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).
É livre a divulgação deste artigo, por qualquer veículo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Mulheres sob julgamento

         João Baptista Herkenhoff
Na sociedade brasileira, a mulher ainda é discriminada e oprimida.
Se há outras opressões e discriminações, atingindo o negro, o migrante, o trabalhador modesto, o pobre, essas discriminações avultam quando estão encarnadas na pessoa de uma mulher – a negra, a mulher migrante, a trabalhadora modesta, a mulher pobre.
A discriminação, que ocorre no trabalho, nas relações familiares, no ambiente social em geral, alcança também os fóruns e tribunais.
Aos setenta e cinco anos de idade, já aposentado na magistratura, eu me vejo no dever de dar testemunho.
Cumprindo esta obrigação, digo a todos os leitores, mas principalmente àqueles que estudam Direito ou pretendem estudar Direito: na minha vida de juiz, procurei ter um olhar de acolhimento para com a mulher oprimida, injustiçada, abandonada, violentada, desprotegida, discriminada.
Vou começar pelo caso da empregada doméstica que estava presa sob a acusação de que cometera crime de furto na casa onde trabalhava. Tinha tirado de uma caixa, onde havia mais dinheiro, apenas o valor de uma passagem de trem para regressar à casa da mãe em Governador Valadares (MG). Agiu assim depois que os patrões se recusaram a lhe pagar pelo menos os dias trabalhados, alegando que ela só teria direito de receber salário depois que completasse um mês de casa. Eu a pus em liberdade.
No dia desse julgamento, a sala de audiências estava cheia. Alguém tomou a iniciativa e recolheu a quantia suficiente para comprar a passagem de que a moça precisava.
Terminei minha decisão com estas palavras:“Lamento que a Justiça não esteja equipada para que o caso fosse entregue a uma assistente social que acompanhasse esta moça e a ajudasse a retomar o curso de sua jovem vida. Se assistente social não tenho, tenho o verbo e acredito no poder do verbo porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Invoco o poder deste verbo, dirijo a Deus este verbo e peço ao Cristo, que está presente nesta sala, por Neuza. Que sua lágrima, derramada nesta audiência, como a lágrima de Madalena, seja recolhida pelo Nazareno.”
Numa outra decisão, mandei libertar Marislei e Telma, que foram presas como vadias, num dia de sábado. Lembrei Vinícius de Moraes que consagrou o sábado como dia de ócio. Nessa mesma decisão observei que, curiosamente, nenhum rico preguiçoso é processado por vadiagem.
Numa terceira decisão, libertei Maria Lúcia, meretriz, acusada de suposta tentativa de homicídio contra um "cliente" que quis dela abusar, tentando praticar ato que a repugnava, com desrespeito a sua dignidade de pessoa humana.
Numa quarta decisão absolvi uma jovem acusada da prática do crime de aborto. Segundo as testemunhas, toda noite embalava um berço vazio, como se nele houvesse uma criança. Percebi que não era suficiente eximi-la do processo penal mas libertá-la também do sentimento de culpa que a atormentava. Disse-lhe então: “Você é muito jovem, sua vida não acabou. Esta criança, que ia nascer, não existe mais. Você poderá ter outras crianças que alegrem sua vida. Eu a absolvo mas você vai prometer não mais embalar um berço vazio.”
Numa quinta decisão, absolvi mãe adotiva que registrou filho alheio como próprio, ferindo artigo expresso do Código Penal. Ponderei, na sentença, que o ato da acusada não ferira direito de terceiros. Ela apenas pretendeu fazer uma “adoção” por caminhos transversos.
João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor.
 P. S. – É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio ou veículo.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Direito Humanitário

                                                 João Baptista Herkenhoff         
Uma longa luta travaram e travam mulheres e homens, grupos ativistas, profetas e mártires para afirmar o primado do Direito contra a barbárie.         
Ao lado dos “Direitos Humanos” e dos “Direitos dos Povos”, vigora o chamado “Direito Humanitário”.
O “Direito Humanitário” busca salvaguardar um “mínimo ético” nos palcos de guerra.
É o “Direito Humanitário” que estabelece o caráter intocável de qualquer lugar onde esteja presente a “Cruz Vermelha Internacional”.  A Cruz Vermelha está acima de nações, partidos ou facções. Onde haja um “ferido de guerra” ali estará a Cruz Vermelha para prestar “socorro humanitário”.
Outras instituições internacionais recebem hoje o mesmo tratamento da Cruz Vermelha, como, por exemplo, os “Médicos sem Fronteiras”.
Também o Direito Humanitário estabelece o respeito ao militar já abatido no confronto das armas, por ferimento que o impossibilite de combater, bem como o resguardo daquele que foi feito prisioneiro. É inominável covardia, repudiada pelo Direito Humanitário, tripudiar sobre o ferido ou sobre aquele já submetido à condição de “prisioneiro de guerra”.
Ainda o Direito Humanitário prescreve que nunca possam ser lançados bombardeios sobre populações civis.      
Os crimes que se praticam contra o Direito Humanitário são considerados “crimes de guerra”. Lamentavelmente, só os que perdem a guerra são julgados pelos seus crimes.  Os vencedores julgam-se isentos de responsabilidade pelos crimes contra a Humanidade, em que tenham incorrido.        
Bebi todos esses conceitos no curso de minha existência: na Casa do Estudante de Cachoeiro de Itapemirim; no contato com meu avô materno que foi magistrado em Santa Catarina e que, na velhice, tornou-se um militante pacifista (datilografei para esse avô, a partir de originais manuscritos, dois de seus livros: O Sol do Pacifismo e A Civilização e sua Soberania); nas aulas da Faculdade de Direito do Espírito Santo, com Ademar Martins, professor de “Teoria Geral do Estado” de toda uma geração acadêmica.       
Como é triste ver esmagado o Direito Humanitário, nesta quadra da História.  Esmagado pelos que jogaram bombas nas torres de Nova York matando milhares de pessoas. Esmagado pelo país que foi vítima dessa agressão e que, em revide, praticou repetidos ataques contra países árabes, vitimando populações civis, inclusive crianças, doentes e velhos. Uma jornalista inglesa registrou que uma bomba foi lançada sobre uma maternidade em Bagdá.    
Não importa se temos o poder de nos opor a essas negações do mínimo ético que é exigido mesmo quando países estão em confronto bélico. Falar podemos, protestar podemos e nunca deveremos nos calar quando a consciência exigir de nós uma posição.
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, Magistrado (aposentado), Supervisor Pedagógico da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo (em atividade), palestrante por todo o Brasil, escritor. Acaba de lançar o livro Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).

P. S. – É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio ou veículo.